Num momento como outro qualquer,
numa escola como outra qualquer me vejo num canto, isolado de tudo e de todos.
Um momento daqueles raros, de preciosidade ímpar. As lembranças começam a
invadir meu pensamento e encher-me de alegrias, dúvidas, limitações,
desesperos, desesperanças, consolo e conforto.
Há alguns anos atrás ainda muito
jovem sem muito conhecimento de mundo e menos ainda da prática docente me vi
numa instituição de formação de educadores. Até então minha ansiedade estava no
ensino de qualidade que havia conquistado com muito esforço. O objetivo até
então era único e exclusivo a formação. Mas no ano de 2001 tive uma das mais
importante experiência da minha vida como educador. Uma experiência que definiu
meus rumos e decidiu meus caminhos profissionais.
Era uma escola graciosa, um
prédio como não se tem na conturbada cidadela de Itapecerica da Serra, região
metropolitana de São Paulo. Uma escola que, embora ficasse no subúrbio, era
muito agradável e tinha um corpo docente muito dedicado ao seu público cheio de
desafios comuns à região. Essa escola se tornou um grato presente para mim
quando recebi a incumbência de estagiar nela, que era uma das mais cobiçadas
por todos os meus colegas. Ali eu estava em parceria de duas das minhas amigas
mais especiais, a Flaviana e a Vivian.
Quando chegamos na escola e
começamos a nos preparar para realizar nossas atividades numa turma da terceira
série a professora ficou doente, tirou uma licença de 15 dias e não havia
professora substituta para a turma. Recebemos, Vivian e eu, a missão de cuidar
daqueles alunos durante esse período. Nossa preocupação foi tamanha e nos levou
a muitos questionamentos sobre nossa real preparação para tal responsabilidade.
Sem tempo hábil para tal resposta entramos na sala e olhamos para aqueles
alunos assustados e talvez tão preocupados quanto nós dois. Perguntas do tipo,
o que eles vão fazer aqui ou será que eles vão aguentar, saiam dos burburinhos
que surgiam nos diversos grupos, ainda que na fila antes de dirigirem-se à sala
de aula. Minha parceira e eu nos olhamos, respiramos fundo e seguimos para a
sala.
Aquela sala com tantas
características de classe primária, muitos cartazes coloridos, atividades
presas em varais na beira da parede, alfabeto no alto da lousa, e diversos
livros infantis ao alcance de quem desejasse um divertimento, nos pareceu tão
sombria e sem cor. Aqueles olhares de negação que nos miravam trouxeram dúvidas
consigo e um desejo de fuga com tremendo desespero. Quando olhei para a Vivian,
parecia-me que havia reciprocidade de sentimentos entre nós. Só nos restava
começar a aula e ver no que ia dar.
Era uma aula de estudos sociais.
Começamos a falar do nosso município e de suas principais características. A
conversa foi ganhando dimensões e a participação da classe tonou-se cada vez
mais intensa e significativa. Até que o debate nos deu a base que precisávamos
e partimos para atividades do livro didático. E foi aí que percebi que o livro
que os alunos tinham usava a cidade de São Paulo como base para explicar as
características de um município e fiquei frustrado, pois nossos alunos, embora
tivessem pais que trabalhavam em São Paulo, não conheciam aquela cidade que o
livro abordava como delas. Sentia com pesar o descontentamento daquelas
crianças em ver que existia uma cidade que era ponto de referência para a
literatura e que essa cidade não era a delas.
Quando terminamos aquela aula e
estávamos indo embora tive uma conversa sincera com minha parceira.
Compartilhei minhas frustrações e descontentamentos sobre o material que usamos
e decidimos pensar em algo que fizesse um link entre o material do livro e a
realidade de cada um deles. Foi aí que eu aprendi o que era ser um professor,
ou melhor um educador.
Para nossas aulas de história,
sempre trazíamos algo relacionado àquela cidade, nas aulas de língua portuguesa
procurávamos usar textos de autores locais e assim incentivar a produção
daqueles alunos, para as aulas de geografia estudávamos o relevo, a vegetação e
todas as características do que eles tinham ao seu redor. Era muito agradável
ver aqueles olhos brilhando e ansiando pela chegada da próxima aula de estudos
sociais. Foi quando nos questionamos como daríamos sentido a tudo aquilo que
estavam produzindo e aprendendo. Tinha que resultar em algo valioso e que
ficasse marcado na vida deles. Não só marcou a vida deles, mas a minha está com
essas marcas até hoje!
Nossas aulas de arte começaram a
se transformar em ateliês produtivos. Na primeira semana produzimos casas e
edifícios com material reciclado e na segunda semana produzimos carrinhos,
caminhões e ônibus com caixinhas de fósforos. No final da aula perguntamos para
os alunos o que deveríamos fazer com tudo aquilo que tínhamos produzido em
nossas aulas. Foi quando alguém captou nossa vontade e propôs que fizéssemos
uma maquete para expor tudo aquilo.
No dia seguinte começamos a
colocar em prática tudo o que havíamos aprendido em nossas aulas de estudos
sociais. Produzimos uma maquete do nosso município, com a vegetação, relevo,
clima e tudo o que tínhamos direito. A zona urbana era muito completa com sua
escola, prefeitura, hospital e trânsito confuso, enquanto a zona rural tinha
seus animais pastando, ruas de terra e pouco movimento. Tudo o que havíamos
produzido em nossas aulas estavam ali compondo aquela que se tornou o marco de
nossa estadia por ali e ocupava todo o fundo da sala de aula.
Algo cômico que marca esse
momento foi quando um aluno perguntou onde poderiam colocar os carrinhos que
estavam feios e um deles disse que toda cidade tem um ferro velho e as cosas
feias e velhas deveriam estar lá. Insistiram e assim fizemos, entre a área
urbana e rural tinha um canto com um monte de carros sobrepostos.
Foi o que deu o toque final ao
nosso trabalho que um dia tinha sido cheio de dúvidas, cheio de inquietações e
naquele momento já era de certeza e tranquilidade. Minha decisão já tinha sido
tomada. Eu queria participar da transformação do conhecimento de muitos. E é o
que tenho procurado fazer desde então.