quinta-feira, 19 de maio de 2016

Nasceu um educador

Num momento como outro qualquer, numa escola como outra qualquer me vejo num canto, isolado de tudo e de todos. Um momento daqueles raros, de preciosidade ímpar. As lembranças começam a invadir meu pensamento e encher-me de alegrias, dúvidas, limitações, desesperos, desesperanças, consolo e conforto.
Há alguns anos atrás ainda muito jovem sem muito conhecimento de mundo e menos ainda da prática docente me vi numa instituição de formação de educadores. Até então minha ansiedade estava no ensino de qualidade que havia conquistado com muito esforço. O objetivo até então era único e exclusivo a formação. Mas no ano de 2001 tive uma das mais importante experiência da minha vida como educador. Uma experiência que definiu meus rumos e decidiu meus caminhos profissionais.
Era uma escola graciosa, um prédio como não se tem na conturbada cidadela de Itapecerica da Serra, região metropolitana de São Paulo. Uma escola que, embora ficasse no subúrbio, era muito agradável e tinha um corpo docente muito dedicado ao seu público cheio de desafios comuns à região. Essa escola se tornou um grato presente para mim quando recebi a incumbência de estagiar nela, que era uma das mais cobiçadas por todos os meus colegas. Ali eu estava em parceria de duas das minhas amigas mais especiais, a Flaviana e a Vivian.
Quando chegamos na escola e começamos a nos preparar para realizar nossas atividades numa turma da terceira série a professora ficou doente, tirou uma licença de 15 dias e não havia professora substituta para a turma. Recebemos, Vivian e eu, a missão de cuidar daqueles alunos durante esse período. Nossa preocupação foi tamanha e nos levou a muitos questionamentos sobre nossa real preparação para tal responsabilidade. Sem tempo hábil para tal resposta entramos na sala e olhamos para aqueles alunos assustados e talvez tão preocupados quanto nós dois. Perguntas do tipo, o que eles vão fazer aqui ou será que eles vão aguentar, saiam dos burburinhos que surgiam nos diversos grupos, ainda que na fila antes de dirigirem-se à sala de aula. Minha parceira e eu nos olhamos, respiramos fundo e seguimos para a sala.
Aquela sala com tantas características de classe primária, muitos cartazes coloridos, atividades presas em varais na beira da parede, alfabeto no alto da lousa, e diversos livros infantis ao alcance de quem desejasse um divertimento, nos pareceu tão sombria e sem cor. Aqueles olhares de negação que nos miravam trouxeram dúvidas consigo e um desejo de fuga com tremendo desespero. Quando olhei para a Vivian, parecia-me que havia reciprocidade de sentimentos entre nós. Só nos restava começar a aula e ver no que ia dar.
Era uma aula de estudos sociais. Começamos a falar do nosso município e de suas principais características. A conversa foi ganhando dimensões e a participação da classe tonou-se cada vez mais intensa e significativa. Até que o debate nos deu a base que precisávamos e partimos para atividades do livro didático. E foi aí que percebi que o livro que os alunos tinham usava a cidade de São Paulo como base para explicar as características de um município e fiquei frustrado, pois nossos alunos, embora tivessem pais que trabalhavam em São Paulo, não conheciam aquela cidade que o livro abordava como delas. Sentia com pesar o descontentamento daquelas crianças em ver que existia uma cidade que era ponto de referência para a literatura e que essa cidade não era a delas.
Quando terminamos aquela aula e estávamos indo embora tive uma conversa sincera com minha parceira. Compartilhei minhas frustrações e descontentamentos sobre o material que usamos e decidimos pensar em algo que fizesse um link entre o material do livro e a realidade de cada um deles. Foi aí que eu aprendi o que era ser um professor, ou melhor um educador.
Para nossas aulas de história, sempre trazíamos algo relacionado àquela cidade, nas aulas de língua portuguesa procurávamos usar textos de autores locais e assim incentivar a produção daqueles alunos, para as aulas de geografia estudávamos o relevo, a vegetação e todas as características do que eles tinham ao seu redor. Era muito agradável ver aqueles olhos brilhando e ansiando pela chegada da próxima aula de estudos sociais. Foi quando nos questionamos como daríamos sentido a tudo aquilo que estavam produzindo e aprendendo. Tinha que resultar em algo valioso e que ficasse marcado na vida deles. Não só marcou a vida deles, mas a minha está com essas marcas até hoje!
Nossas aulas de arte começaram a se transformar em ateliês produtivos. Na primeira semana produzimos casas e edifícios com material reciclado e na segunda semana produzimos carrinhos, caminhões e ônibus com caixinhas de fósforos. No final da aula perguntamos para os alunos o que deveríamos fazer com tudo aquilo que tínhamos produzido em nossas aulas. Foi quando alguém captou nossa vontade e propôs que fizéssemos uma maquete para expor tudo aquilo.
No dia seguinte começamos a colocar em prática tudo o que havíamos aprendido em nossas aulas de estudos sociais. Produzimos uma maquete do nosso município, com a vegetação, relevo, clima e tudo o que tínhamos direito. A zona urbana era muito completa com sua escola, prefeitura, hospital e trânsito confuso, enquanto a zona rural tinha seus animais pastando, ruas de terra e pouco movimento. Tudo o que havíamos produzido em nossas aulas estavam ali compondo aquela que se tornou o marco de nossa estadia por ali e ocupava todo o fundo da sala de aula.
Algo cômico que marca esse momento foi quando um aluno perguntou onde poderiam colocar os carrinhos que estavam feios e um deles disse que toda cidade tem um ferro velho e as cosas feias e velhas deveriam estar lá. Insistiram e assim fizemos, entre a área urbana e rural tinha um canto com um monte de carros sobrepostos. 

Foi o que deu o toque final ao nosso trabalho que um dia tinha sido cheio de dúvidas, cheio de inquietações e naquele momento já era de certeza e tranquilidade. Minha decisão já tinha sido tomada. Eu queria participar da transformação do conhecimento de muitos. E é o que tenho procurado fazer desde então.